GARRINCHA 50 ANOS
História de amor e de sombras, de alegrias e tristezas, teve Copa do Mundo do Chile como cenário. Meio século depois, restam lembranças e dores
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Um Garrincha em miniatura, de sete centímetros, encontra moradia na palma da mão de Elza Soares. Os óculos não são suficientemente escuros para esconder: o olhar dela é roubado pelo bonequinho. Ela fala com a imagem como se ali estivesse o próprio Mané, morto há quase três décadas.
- Querido... Você precisa me ajudar. Só eu posso te defender por aqui.
A cena tem um misto de beleza e tristeza. Faz sentido: toda a história de Elza Soares com Garrincha foi justamente um misto de beleza e tristeza. O conto de fadas encontrou seu choque de realidade. A cantora não foi sempre princesa; o craque teve seus momentos de sapo. A união dos dois resultou em um caso raro, para o bem e para o mal. E iniciado há exatos 50 anos, enquanto o Mané deixava adversários mais tortos do que suas próprias pernas para carregar o Brasil rumo ao bicampeonato mundial - trajetória que começou em 30 de maio de 1962, com vitória de 2 a 0 sobre o México em Viña del Mar.
Aquela Copa do Mundo uniu os dois. O destino deles foi desenhado no Chile, enquanto o mundo ficava boquiaberto com a genialidade daquele sujeito de drible fácil, de fala mansa, de vida simples. Conforme o Brasil avançava no Mundial, aumentava a proximidade entre Elza e Garrincha. Até que uma frase dele serviu como laço definitivo. Mané olhou para aquela mulata atrevida, sedutora, e avisou: “Eu vou ganhar a Copa para você”.
E ganhou. Garrincha foi o maior gênio daquela equipe, campeã invicta, com cinco vitórias e um empate. Quando Pelé se machucou, no segundo jogo, contra a Tchecoslováquia, o Mané concentrou em suas chuteiras todo o temor dos adversários diante de um futebol que parecia diferente de todos os outros – jogado com outra noção de tempo e espaço. Encantou o tempo todo. E foi decisivo no mata-mata.
Garrincha fez quatro gols: dois nas quartas de final, em vitória de 3 a 1 sobre a Inglaterra, outros dois nas semifinais, em triunfo de 4 a 2 contra o Chile. Tudo sob os olhos de Elza Soares, com a empolgação de um romance que ainda engatinhava.
Faz 50 anos. Depois de caminhar devagar, em passos quase de formiga, e se acomodar em sua poltrona preferida, com quadros de sua carreira ao fundo, Elza Soares se mostra incrédula com a rigidez da matemática.
- Passou tão rápido...
Ela olha em volta, como se procurasse o passado na sala de seu apartamento no bairro do Catete, no Rio de Janeiro. É uma sala ampla, mas o passado não cabe ali. Está esparramado por vários cantos. Inclusive pelo Chile, onde, simplificados os fatos, tudo realmente começou.
- Eu lembro do Mané com febre antes da final. Lembro dele me dizendo que ganharia a Copa para mim. Foi o Mané que deu aquela Copa para o Brasil, e pouca gente lembra disso hoje. Para mim, eram 11 Manés dentro de campo. Eu lembro da pureza e da inocência dele: do quanto ele foi ingênuo, do quanto ele podia nos dar e do quanto ele nos deu.
Garrincha e Elza se conheciam desde antes do Mundial. Ela diz que foi convidada a defender Mané em uma campanha que presentearia o ganhador com um carro. Conta que recebeu um bloco de rifas para vender entre eventuais admiradores do craque. Comprou, ela própria, todos os números. A situação os aproximou.
Mas Elza Soares não foi ao Chile por causa de Garrincha. O que a motivou a ir ao Mundial foi o convite de um empresário uruguaio, disposto a transformar a artista em madrinha da Seleção Brasileira. Ver Mané foi complemento. Ela nega que tenha circulado livremente pela concentração, que tenha entrado com frequência no vestiário. Mas admite que esteve em ambos, mesmo que por pouco tempo.
- Fui para o Chile para ser madrinha da Seleção, não para ver o Mané. Fui convidada por um empresário uruguaio, e aceitei. Fui assistir a dois treinos em Teresópolis e depois o visitei na concentração. Mas apenas conversávamos. É claro que tinha aquela coisa (entre Elza e Garrincha), mas não era nada ainda. No Chile, não ficava visitando o Mané na concentração. Não tinha isso. Sempre houve o respeito. Mas foi lá que o Mané me prometeu e me deu a Copa de presente. Fiquei com um pouco de medo. Não acreditei. Eu nem sabia direito o que era uma Copa...
- Fui para o Chile para ser madrinha da Seleção, não para ver o Mané. Fui convidada por um empresário uruguaio, e aceitei. Fui assistir a dois treinos em Teresópolis e depois o visitei na concentração. Mas apenas conversávamos. É claro que tinha aquela coisa (entre Elza e Garrincha), mas não era nada ainda. No Chile, não ficava visitando o Mané na concentração. Não tinha isso. Sempre houve o respeito. Mas foi lá que o Mané me prometeu e me deu a Copa de presente. Fiquei com um pouco de medo. Não acreditei. Eu nem sabia direito o que era uma Copa...
Elza lembra que a relação se tornou pública por culpa de Di Stéfano, craque argentino que defendeu a Espanha – viajou para a Copa de 62, mas não foi a campo, por causa de uma lesão. Uma provocação dele rendeu uma reação de Garrincha. Pelas lembranças da cantora, Mané soube que o rival zombara dele, dizendo que o Brasil perderia o Mundial mesmo se tivesse 11 Garrinchas em campo.
- Contaram isso para ele num almoço. Aí ele se levantou e falou: “Gente boa, acabo de pedir a Elza em namoro e vou jogar para ela”.
Foram os tempos mais felizes para o casal. Depois da final, Elza invadiu o vestiário. Os jogadores estavam tomando banho. Mas ela diz que não viu ninguém nu. Só viu Mané.
- Eu estava louca para agradecer. Ganhei a Copa de presente. E o Mané foi aquela coisa sagrada em campo...
No abraço dos dois, parecia estar desenhado um futuro de alegria. Enquanto o Brasil celebrava a confirmação de que tinha o melhor futebol do planeta, o romance entre a artista de voz firme e o gênio de pernas tortas tinha um momento típico de filme.
Um filme de drama.
De amor e de sombras
Elza Soares e Mané Garrincha ficaram juntos mais de 16 anos, entre idas e vindas, até a morte do gênio. O alcoolismo dele fez duas vítimas: o próprio Mané e o relacionamento do casal. Nenhum deles resistiu ao vício do craque. O amor entre eles morreu primeiro, no final dos anos 70, depois de (mais) uma agressão de Garrincha a Elza. O ex-jogador deixou a vida em 1983 – driblou todo mundo, menos a si próprio.
Até o fim trágico de Garrincha, pequenos percalços paralelos minaram a vida do casal. O relacionamento deles parecia fadado a não dar certo. Eles caíram em uma roda-gigante de infortúnios: conforme o jogador mergulhava em decadência, a artista via os dedos da sociedade indicarem que ela era a culpada; conforme ela levava a culpa, se tornavam mais escassos seus shows e despencava a venda de seus discos; conforme ela perdia popularidade, diminuía o dinheiro; conforme diminuía o dinheiro, mais Garrincha bebia; conforme mais Garrincha bebia, mais difícil ficava sua recuperação, maior era sua decadência, maior era a culpa apontada para Elza.
A cantora, meio século depois de conhecer Garrincha, ainda se defende das acusações de que contribuiu para a ruína dele. Foi o contrário, argumenta ela. Elza diz que Mané não sabia o que fazer com o dinheiro que recebia - que mal compreendia por que era pago para jogar futebol. Garante que sustentava a casa, e inclusive os filhos do casamento anterior de Garrincha, com o que ganhava em sua carreira artística. Lembra que ele sequer tinha carteira de identidade até conhecê-la.
E lamenta que o relacionamento não tenha sido aceito. Elza diz que eles foram perseguidos, que mal podiam sair de casa, que desafiaram o conservadorismo da época.
- Os dois eram grandes ídolos. E isso incomodou. Eu cheguei incomodando como cantora, mulher, uma menina negra cheia de suingue e vontade. E o Mané era aquele índio maravilhoso que se tornou um grande jogador de futebol. Isso incomodava muito as pessoas. A gente fazia às claras o que todos faziam escondidos, debaixo dos panos. Acho que nem Nelson Rodrigues conseguiria descrever isso aí. Moralismo total...
Há relatos até de agressões. Elza chega a rir da situação.
- Teve uma ocasião em que fui ser madrinha de uma marca de elevadores, perto do morro da Mangueira. Quando descobriram que eu estava lá, não passava mas ninguém na rua. Era pau, era pedra... O vizinho viu que estavam tentando me agredir. Tive que subir um muro, umas grades... Isso tinha que ser filmado. Isso hoje daria um seriado do cão (risos). Eu subindo com as calças do cara amarradas. Era um cara gordão. Caí do outro lado da rua. Meu motorista deu a volta, foi me buscar do outro lado. Fiquei caída no meio da rua.
Também houve boas lembranças. No auge da Ditadura Militar, em 1969, o casal foi parar na Itália. Em Roma, recebeu a proteção de Chico Buarque, exilado no país. Foram tempos de conversas sobre música e futebol. Com Garrincha já aposentado, depois de passar rapidamente, sem sucesso, por diferentes clubes, a carreira de Elza foi o suporte do casal.
Mas, entre as lembranças, há mais motivos para chorar do que para rir, admite Elza. O alcoolismo de Mané parecia invencível. Elza não conseguiu superá-lo. Passados quase 30 anos da morte de Garrincha, a viúva dele não vê motivos psicológicos para o vício do craque. Ela duvida que ele bebesse por tristeza ou por alegria. Recorda que o próprio Garrincha dizia que aprendeu a beber quando tinha cinco anos. A influência foi do pai dele.
Depois da morte de Mané, Elza teria outra dor, ainda relacionada ao craque. O filho deles, Manuel Garrincha dos Santos Júnior, com apenas nove anos, perdeu a vida em um acidente de carro. Foi em 1986, três anos depois da morte do craque.
- Aquilo me enlouqueceu. Acabou a minha cabeça, acabou meu mundo. O Garrinchinha, para o Mané, era tudo. Tenho muita saudade do meu filho. E também do Garrincha, do jogador que ele era, do ser humano...
De Pelé a Ronaldo: incômodos e mágoas
A cena citada no início desta matéria, de Elza dizendo ao bonequinho de Garrincha que só ela pode defendê-lo, tem a ver com uma mágoa da artista. Ela acredita que Mané não é devidamente reconhecido por aquilo que fez pelo futebol brasileiro.
E isso inclui outros ídolos brasileiros. E inclui Pelé. E também Ronaldo. Para o Fenômeno, envolvido na organização da Copa do Mundo de 2014, Elza deixa um pedido.
- Eu vejo as pessoas falando da grande Copa. Ronaldo, gosto muito de você e te respeito muito. Mas queria que você também se lembrasse do Mané. Se vocês chegaram onde chegaram, foi porque existia uma cama feita para todo mundo.
Com Pelé, a mágoa soa maior. Ela gostaria que o Rei falasse mais de seu antigo colega de Seleção.
- Queria que falassem mais do Mané. Até o próprio Pelé. O Mané não vai competir mais com ele, até porque está morto. Está na hora de falar mais do Mané. Precisamos fazer uma grande homenagem ao Mané nessa Copa no Brasil. Isso está na história. Ninguém vai conseguir destruir.
Elza sugere que a relação entre Garrincha e Pelé não era das mais próximas. E garante que Mané jamais teve um pingo de preocupação em superar o camisa 10.
- O Mané nunca falou muito disso (da relação com Pelé). Nunca tocou no assunto. Ele não ligava muito para isso. Não tinha essa preocupação de ser o melhor. Ele falava: “Ô, gente boa, você quer ser rei, seja rei. Quer ser príncipe, seja príncipe. Eu não quero nada disso”. A ambição dele era muito pouca, ou nenhuma. Esse tipo de comportamento não trouxe nenhum benefício para ele. Isso era dele. Ele nunca teve grandes ambições. Ele não tinha noção nenhuma do tamanho dele. Não tinha noção do que ele era. Nunca se importou com isso. O Mané queria uma bermuda, um chinelo e uma camiseta. O Mané era índio.Todos sabem disso. Nunca quis terras, apartamentos, carros. Sempre teve uma vida muito tranquila.
Uma Copa ganha por Elza
Elza Soares tem mais de 70 anos. Uma dica: não ouse perguntar a idade dela, tampouco chamá-la de senhora. Ela segue fazendo shows, apesar da dificuldade para caminhar, consequência de uma cirurgia na cervical. Mas a voz segue fiel, e ela espera que continue assim pelo menos até 2014. É ano de Copa do Mundo. E no Brasil. Com tantas lembranças ligadas à competição, Elza tem um sonho: quer cantar na cerimônia de abertura, como aconteceu no Pan-Americano do Rio, em 2007.
Até lá, quanto mais se fala em Copa, mais Elza lembra de 1962. Lembra de um Garrincha febril, à espera da final. E sente orgulho.
- Sem ele, o Brasil não ganharia aquela final. O Amarildo entrou no lugar do Pelé, mas quem ganhou essa Copa foi o Mané. E a de 1958 também. Fui há pouco para a Suécia, e o consagrado, o endeusado, é o Mane. Falam do Garrincha até hoje na Suécia. Ele é um deus.
Se tudo der certo, o Brasil será hexacampeão mundial dentro de dois anos, mantendo aquela linhagem dos tempos de Garrincha. Elza promete vibrar como só vibram aqueles que sabem o que é ganhar uma Copa do Mundo. E ela não tem dúvida: em 1962, com a promessa feita a ela por Mané, fez parte do título.
- Acho que a minha presença valeu muito para ele. Ganhei a Copa de 1962. Mas o Brasil todo ganhou. Aquilo foi lindo demais...
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